O direito do trabalhador à alimentação, os tíquetes e a jurisprudência do Carf
Na semana passada foi celebrado o Dia da Justiça, sendo o Carf órgão colegiado de protagonismo que preza pela "imparcialidade e promoção da justiça fiscal" nas demandas postas à sua apreciação. Por inexistir um método único de interpretação das normas ou uma única resposta para problemas complexos, a dissidência é constantemente verificada no âmbito do Carf, o que nos parece assaz salutar para o enriquecimento dos debates. Tema que encontra vozes dissonantes na 2ª Seção diz respeito à (não) incidência de contribuições previdenciárias sobre o auxílio-alimentação prestado mediante os chamados tíquete-alimentação/refeição, vale-alimentação/refeição ou cartão-alimentação/refeição.
Há muito adverte Lenio Streck ser a nossa Carta Constitucional "o topos hermenêutico que conformará a interpretação jurídica do restante do sistema jurídico". Inadmissível é, portanto, atribuir à norma sentido incompatível com aquilo previsto na CRFB/88. É que o hercúleo trabalho a ser desenvolvido pelo aplicador, na qualidade de intérprete, deve mirar sempre buscar soluções aptas a conferir uma eficácia máxima dos pressupostos normativos de natureza constitucional, sem se olvidar da imperiosidade de proferir decisão que seja devidamente fundamentada ex vi do artigo 489 do CPC, cuja aplicação é subsidiária no âmbito do contencioso administrativo fiscal.
A CRFB/88, nascida no constitucionalismo do pós-guerra, reflete, em larguíssima medida, as declarações e pactos internacionais em matéria de direitos humanos. Justamente por isso que "[e]rra todo aquele que vislumbra no valor das Declarações dos Direitos Humanos uma noção abstrata, metafísica, puramente ideal, produto da ilusão ou do otimismo ideológico. A verdade é que sem esse valor não se explicaria a essência das Constituições e dos tratados, que objetivamente compõem as duas faces do direito público a interna e a externa". A Carta Constitucional brasileira, por ter absorvido parcela substancial daquilo que avençado em âmbito internacional, é maior prova dessa constatação.
O direito humano à alimentação consta não só na Declaração Universal dos Direitos Humanos como ainda no Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, que goza de status normativo supralegal. E, com a Emenda Constitucional nº 64/2010, alterado o artigo 6º da CRFB/88 para introduzir a alimentação como direito social. Se é bem verdade que "[t]odo o ordenamento jurídico infraconstitucional, inclusive o tributário e o previdenciário, é fecundado pelas balizas hospedadas na Constituição, notadamente os direitos sociais", igualmente verdadeira a necessidade de uma hermenêutica vinculada aos direitos fundamentais, que obriga que sejam as normas infraconstitucionais "interpretadas à luz (por este motivo o 'efeito de irradiação') dos direitos fundamentais sociais".
Certo que no âmbito do processo administrativo fiscal existem amarras que não são impostos ao Poder Judiciário, eis que somente a ele é confiado o monopólio da jurisdição judicial. Daí de curial importância a análise do que dispõe a Lei nº 8.212/91, que elenca quais os montantes não integram o salário-de-contribuição, enumerando, dentre eles, "a parcela in natura recebida de acordo com os programas de alimentação aprovados pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social, nos termos da Lei nº 6.321, de 14 de abril de 1976"ex vi da al. "c" do §9º do artigo 28 da Lei nº 8.212/91.
A desnecessidade de adesão ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) para fins de não incidência da contribuição previdenciária sobre o auxílio in natura é matéria pacificada seja no âmbito do Carf quanto do col. Superior Tribunal de Justiça, tendo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional editado, inclusive, o Ato Declaratório nº 3, que "dispensa de apresentação de contestação e de interposição de recursos, bem como a desistência dos já interpostos, desde que inexista outro fundamento relevante: 'nas ações judiciais que visem a obter a declaração de que sobre o pagamento in natura do auxílio-alimentação não há incidência de contribuição previdenciária'". A controvérsia está, portanto, quando o fornecimento da alimentação se dá mediante tíquetes, cartões e vales alimentação/refeição. Duas foram as correntes que se formaram.
A primeira delas, que prevalece na maior parte dos julgados proferidos pela Câmara Superior, destaca, inicialmente, que "[o] Ato Declaratório PGFN nº 03/2011 somente é aplicável quando demonstrado que, embora não tenha formalizado a adesão ao PAT, o sujeito passivo forneceu alimentação in natura, o que não abrange o pagamento em tickets". Acrescido que, para além da necessidade de observância da literalidade do disposto na al. "c" do §9º do artigo 28 da Lei nº 8.212/91, em idêntico sentido estaria o artigo 3º da Lei nº 6.321/1976, que isentaria apenas a parcela paga in natura. Afirma que o Decreto nº 05/1991, que regulamentou a Lei nº 6.321/1976, deixa clara a necessidade de adesão ao PAT para que a parcela referente aos vales-alimentação não integre a base de cálculo da contribuição.
Com arrimo em precedente proferido pelo STJ, aduzem que "o pagamento em pecúnia por meio de tickets não satisfaz a nenhuma das modalidades legais que autorizariam sua exclusão do salário de contribuição". Em suma, por entenderem que o pagamento do auxílio-alimentação mediante cartões não seria in natura, imperiosa a inscrição no PAT para que, sobre as parcelas, não se incida a contribuição previdenciária.
Em sentido contrário, os que se filiam à segunda vertente sustentam que "[o] ticket-refeição (ou vale-alimentação) mais se aproxima ao fornecimento de alimentação in natura que propriamente do pagamento em dinheiro, não havendo diferença relevante entre a empresa fornecer os alimentos aos empregados diretamente nas suas instalações ou entregar-lhes ticketrefeição para que possam se alimentar nos restaurantes conveniados". Isso porque, sejam fornecidos vales, tíquetes ou cartões-alimentação a finalidade é única: viabilizar a aquisição de gêneros alimentícios pelo trabalhador, porquanto os montantes não podem ser despendidos de outra forma. É dizer, "[o] vale-refeição gera um crédito pecuniário de aplicação restrita a alimentação do trabalhador".
Com amparo em precedente proferido pelo Tribunal Regional Federal, afastada a incidência das contribuições no âmbito do Carf, porquanto à exemplo do auxílio-transporte, fornecido mediante vales e cartões, os tíquetes se prestariam a custear aquilo que se configura necessário ao obreiro desenvolver seu mister. Não seriam, por esse motivo, pagos "pelo trabalho" e sim "para o trabalho".
Para os pagamentos mediante tíquetes-alimentação e congêneres feitos a partir de 11 de novembro de 2017, data da entrada em vigor da reforma trabalhista, não há dúvidas: não integram a base de cálculo das contribuições previdenciárias, por força do disposto no § 2º do artigo 457 da CLT. Para os fatos geradores ocorridos antes do retromencionado marco temporal, há de permanecer os profícuos debates no Carf em busca de uma solução que se apresente mais adequada à nossa ordem infra e constitucional.
Fonte: ConJur