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Cobertura trabalhista e previdenciária no seguro-garantia: oportunidade esquecida

Foi com a Circular Susep nº 477, de 30 de setembro de 2013, que um produto promissor começou a ser comercializado pelas seguradoras que trabalham com seguro-garantia: a cobertura adicional para ações trabalhistas e previdenciárias. A cobertura previa a indenização dos prejuízos relacionados às obrigações trabalhistas do tomador (empresa contratada), nas quais o segurado (geralmente um ente da administração pública) fosse condenado subsidiariamente por sentença transitada em julgado.

A cobertura estava em consonância com o artigo 71, parágrafo primeiro, da antiga Lei de Licitações nº 8.666/93, e com a Súmula 331 do TST (Tribunal Superior do Trabalho), que limitavam a responsabilidade subsidiária da administração pública em relação aos encargos trabalhistas e previdenciários resultantes da execução do contrato contanto que houvesse decisão judicial que reconhecesse tal responsabilidade subsidiária (seja por uma omissão ou falha de fiscalização).

Enquanto vigorava a Circular 477, a cobertura adicional trabalhista e previdenciária era essencial para o ente administrativo, dada a alta probabilidade de ações trabalhistas de ex-funcionários do tomador, especialmente em contratos de serviços contínuos. Além disso, a cobertura era lucrativa para as seguradoras, pois estava em conformidade com a legislação e a súmula do TST.

No entanto, não demoraram para surgir problemas. Os entes da administração pública que exigiam apólices de seguro-garantia buscavam se proteger não apenas de futuras ações trabalhistas, mas também da inadimplência do tomador em relação a créditos trabalhistas logo após a rescisão contratual, mesmo sem a existência de ações judiciais.

Na visão da administração pública, ao lidar com contratos de dedicação exclusiva de mão de obra, havia a preocupação de se tornar responsável solidariamente em casos de inadimplência trabalhista por parte do tomador. Diante desse risco, os entes públicos preferiam não esperar o ajuizamento de ações trabalhistas contra tomadores, muitas vezes insolventes, para então solicitar a indenização à seguradora.

Ao optar pelo pagamento direto aos funcionários após a rescisão contratual, a administração não apenas acelerava o processo de quitação das verbas trabalhistas e da indenização securitária, mas também evitava custos adicionais, como custas judiciais, juros e atualização monetária.

Pagamento de obrigações trabalhistas e previdenciárias

Foi nesse contexto que a Susep publicou a Circular nº 577, de 26 de setembro de 2018, em consonância com a Instrução Normativa nº 05, de 26 de maio de 2017, terminando que a seguradora pague as obrigações trabalhistas e previdenciárias inadimplidas se o tomador não quitá-las até dois meses após a rescisão do contrato.

As reações das seguradoras à Circular nº 577 foram imediatas: o seu conteúdo afrontava diretamente a Lei de Licitações e a Súmula 331 do TST. A alegação entre as seguradoras era de que a responsabilidade subsidiária do segurado havia sido desconsiderada pela circular ao prever o pagamento de prejuízos sofridos por débitos trabalhistas do tomador independentemente de uma condenação transitada em julgado.

Para colocar um fim nas discussões entre o mercado segurador e a administração pública acerca da extensão da cobertura adicional trabalhista e previdenciária, a Circular Susep nº 662, de 11 de abril de 2022 revogou a Circular 577, eliminando a obrigatoriedade de reembolso sem a condenação judicial transitada em julgado.

Entretanto, mesmo com a revogação da Circular nº 577, parte do seu conteúdo (e, principalmente, parte do conteúdo da Instrução Normativa nº 05, de 27 de maio de 2017) foi incorporado à Lei nº 14.133/2021, que estabelece normas gerais de licitação e contratação para as administrações públicas em todo o Brasil.

Uma dessas incorporações se refere ao artigo 139, Inciso III, que introduz mudanças significativas nos casos de rescisão unilateral de contratos pela administração pública, impondo novas obrigações à seguradora, como o pagamento de verbas trabalhistas e previdenciárias ao invés do pagamento de indenização securitária.

O artigo 121, parágrafo terceiro, reforça essa ideia. A norma afirma que a administração pública, ao celebrar tais contratos, poderá exigir do contratado garantias adicionais para assegurar o cumprimento das obrigações trabalhistas. Entre as medidas autorizadas, está a contratação de seguro-garantia com cobertura específica para verbas rescisórias inadimplidas por meio da retenção da garantia.

No entanto, permanece motivo de debate se é legítimo exigir a retenção da garantia para assegurar o cumprimento das obrigações trabalhistas, já que a apólice de seguro-garantia pode não prever essa retenção explicitamente.

A retenção da garantia visa a mitigar riscos trabalhistas, garantindo que os trabalhadores recebam seus direitos antes da liberação total dos valores ao tomador. Contudo, como a apólice é um contrato entre seguradora e tomador firmado sempre com a anuência do segurado, se não houver previsão para retenção em casos de inadimplência trabalhista, a seguradora não estaria vinculada a essa exigência, a menos que esteja expressamente incluída na apólice.

Ajuste de cláusulas do seguro

O princípio da liberdade contratual permite que seguradora e tomador ajustem as cláusulas do seguro conforme suas necessidades, desde que respeitem normas de ordem pública. Assim, a imposição da retenção pode ser vista como uma restrição excessiva à autonomia contratual. Em contratos de construção pública, essa retenção pode resultar em custos operacionais e financeiros imprevistos, mesmo para empresas com histórico comprovado.

Atualmente, a posição da maior parte das seguradoras é a de não comercializar uma cobertura trabalhista que indenize o segurado diante de débitos trabalhistas inadimplidos pelo tomador na execução do contrato principal sem a existência de uma condenação subsidiária transitada em julgado. Conforme realçado neste artigo, há razões para essa posição que, inclusive, perpassam por um histórico de debates amplos na época da Circular 577.

No entanto, se de fato compreendermos que a nova Lei de Licitações apenas legalizou a cobertura trabalhista previdenciária logo após a rescisão do contrato principal, sem impor sua obrigatoriedade, há uma oportunidade para as seguradoras comercializarem um novo produto.

Afinal, se bem estruturada, a cobertura em referência pode ser valiosa para a administração pública, desde que não haja prejuízo à segurança jurídica das relações contratuais, com cláusulas claras e baseadas na autonomia das vontades das partes.

Em conclusão, a cobertura trabalhista e previdenciária no seguro-garantia permanece um tema complexo e controverso no mercado segurador, especialmente no contexto da administração pública. A Circular Susep nº 662/2022 e a Lei nº 14.133/2021 representam tentativas de equilibrar a proteção dos direitos trabalhistas com a flexibilidade contratual e a autonomia das partes envolvidas.

No entanto, a hesitação das seguradoras em comercializar essa cobertura revela um mercado ainda reticente em abraçar plenamente um produto que, se bem estruturado, poderia atender tanto à necessidade de mitigação de riscos trabalhistas quanto aos princípios fundamentais do direito contratual. O desafio é encontrar um equilíbrio que torne essa cobertura viável e segura, promovendo segurança jurídica sem comprometer os interesses das partes.

Fonte: ConJur

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