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Reforma trabalhista não pode suprimir direito adquirido

Em recente decisão, a 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, em voto do ministro Augusto César Leite de Carvalho, com fulcro no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que protege o contrato, como ato jurídico perfeito, das inovações legislativas o Colegiado, por maioria de votos, entendeu que a Lei da Reforma Trabalhista não pode incidir sobre relações jurídicas que já estavam em curso à época em que passou a viger.

O caso concreto julgado pela Corte Superior Trabalhista, e que foi inclusive objeto de matéria veiculada pela ConJur, com o título Reforma trabalhista não incide em contratos anteriores à sua vigência, diz TST, envolvia um empregado que trabalhava em área de difícil acesso e que ingressou com pedido de horas extraordinárias referente ao tempo gasto no trajeto entre sua casa e a empresa. Antes da Reforma Trabalhista, quando o contrato de trabalho fora firmado, o deslocamento oferecido pelo empregador era considerado horas “in itinere”, incidindo sobre a jornada. Entretanto, a partir da vigência da reforma, isso parou de valer.

Com efeito, a situação aqui em análise traz uma questão tormentosa em torno da aplicabilidade do direito intertemporal da Lei da Reforma Trabalhista, uma vez que o contrato de trabalho da parte fora pactuado antes da vigência da Lei nº 13.467/2017, continuando a produzir seus efeitos após o dia 11 de novembro de 2017.

É certo que as denominadas “horas de trajeto”, na
forma da antiga redação do §2º do artigo 58 da CLT, eram entendidas como
o “tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu
retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução” (g.n.).

Hodiernamente,
as horas de percurso não mais são contabilizadas na jornada de trabalho
para efeito de cômputo das horas extras, uma vez que a atual redação do
citado preceito legal afirma que “o tempo despendido pelo
empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de
trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de
transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador” (g.n.).

Ora, ao não limitar o pagamento de horas extraordinárias até o dia em que entrou em vigor a Lei Reformista, a Corte Superior Trabalhista deu um importante passo para dirimir a controvérsia em torno da aplicabilidade do direito intertemporal envolvendo os aspectos materiais da Lei nº 13.467/2017. Nas palavras do relator do processo, ministro Augusto César Leite de Carvalho, extraída dos autos de nº 1102-52.2016.5.22.0101, “a lei não pode incidir sobre relações jurídicas em curso, sob pena de violar ato jurídico perfeito. A parcela salarial, porque integra o núcleo de irredutibilidade na contraprestação pecuniária devida em razão do trabalho, não pode ter a sua natureza retributiva modificada por lei, sob pena de violar direito adquirido".

E aqui, portanto, tal como decidiu o Colendo
Tribunal Superior do Trabalho, faz-se também a defesa pela
inaplicabilidade da Reforma Trabalhista em razão da particularidade do
caso concreto. Aliás, consoante também afirmou o relator, "é
possível argumentar, com base em precedente vinculante da Corte IDH, que
a titularidade de direitos humanos e fundamentais está assegurada
apenas à parte vulnerável, ou contratualmente débil, dentre os sujeitos
que compõem as relações jurídicas".

Para tanto, haja vista o grande
impacto da Lei nº 13.467/2017 aos processos em curso quando passou a
vigorar as novas diretrizes da Lei da Reforma Trabalhista,
registrem-se abaixo as razões pelas quais acertada a decisão proferida pela Corte de Vértice do Poder Judiciário Trabalhista.

Primeiro,
porque o então artigo 2º da MP nº 808/2017, o qual dispunha que a Lei
nº 13.467/2017 se aplicava, na integralidade, aos contratos de trabalho
vigentes, não mais subsiste no ordenamento jurídico pátrio, dado que a referida medida provisória não fora convertida em lei ordinária, tendo perdido vigência em 23.4.2018.

Segundo,
porque o tratamento dispensado pela norma celetária para a proteção de
direitos dos trabalhadores submetidos à condição de empregado é dos
artigos 9º, 444 e 468 da CLT, e que exprimem uma liberdade
contratual contida sob pena de nulidade, elevada que está a proteção do
trabalho ao nível de interesse e de ordem pública
.

Terceiro, porque é preceito básico de direito intertemporal que, apesar de ser aplicada de forma imediata, a lei nova, via de regra, não tem o condão de reger situações jurídicas firmadas antes da sua vigência, segundo o que preceitua o princípio basilar da irretroatividade.

A irretroatividade das leis, aliás, consagra um
ideal maior, relacionado à segurança jurídica e à estabilização das
relações sociais.
Trata-se de regra adotada no Brasil desde a
Constituição de 1824 e repetida em todos os demais diplomas
constitucionais, com exceção da Carta de 1937, de cunho nitidamente
ditatorial e antidemocrático, que estabelecia a possibilidade de
retroação dos atos normativos.

Nesse prumo, de se
transcrever o artigo 6º da LINDB: “A Lei em vigor terá efeito imediato e
geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a
coisa julgada”. Logo, a lei não alcança situações anteriores a sua
vigência, sendo que, entrando em vigor, terá efeito imediato e geral,
respeitados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada
(CF, art. 5º, XXXVI). Tal princípio decorre da necessidade de se obter segurança jurídica (princípio da irretroatividade).

Bem por isso, no tocante à eficácia da lei no tempo, é possível concluir em síntese que (i) são de ordem constitucional os princípios do respeito ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito; (ii) como regra, a lei nova tem efeito imediato, não se aplicando aos fatos anteriores; (iii) pode haver retroatividade expressa, desde que não atinja direito adquirido, direito adquirido e a coisa julgada; e (iv) a regra geral, no silêncio da lei, é sua irretroatividade.

Quarto, porque as novas diretrizes trazidas pelo
legislador reformista não têm eficácia retroativa, sob pena de violar o
direito adquirido à condição mais benéfica pelo empregado
. Ora,
embora seja possível a aplicação imediata da Lei nº 13.467/2017 aos
contratos de trabalhos à época em curso no dia 11.11.2017, isso não
representa dizer que o legislador possa desconstruir o patamar mínimo de
direitos já incorporado ao patrimônio jurídico dos empregados.

E
tal afirmativa se justifica com espeque no princípio da proteção
(Américo Plá Rodriguez), o qual, como é sabido, se subdivide no (i)
subprincípio do “in dubio pro operario”; (ii) no subprincípio da norma
mais favorável; e, sobretudo, (iii) no subprincípio da condição mais
benéfica.

De se ver que o princípio da
proteção visa conferir exatamente tratamento especial à parte mais
vulnerável da relação empregatícia, criando uma superioridade jurídica a
favor do empregado, em prol da igualdade substancial entre as partes.
Essa, inclusive, é justamente a “ratio essendi” do direito do trabalho.

Quinto, porque o Tribunal Superior do Trabalho, antes mesmo da Lei da Reforma Trabalhista, em caso análogo ao das horas “in itinere”, já possuía entendimento pacífico no sentido de que, em caso de superveniente alteração prejudicial da legislação trabalhista, o empregado que já incorporou a condição mais beneficia ao seu contrato de trabalho não pode ter seu patrimônio jurídico, neste ponto, atingido pela nova legislação se ela, ao invés de promover uma ampliação de direitos, suprime e/ou reduz o exercício e gozo de dita condição mais vantajosa.

Oportuna aqui a citação do item III da Súmula nº 191 do C. TST que, ao tratar da base do adicional de periculosidade – reduzida que foi aos eletricitários pela Lei nº 12.740/2012, deixando de ser a remuneração, para incidir sobre o salário-base – não foi aplicada aos trabalhadores com contratos firmados antes do advento de referida lei, uma vez que o adicional de periculosidade, pago sobre a remuneração, se traduziu em condição mais benéfica que fora incorporada ao patrimônio jurídico daqueles profissionais que já prestavam serviços expostos à condições periculosas:

Sexto, porque se deve adotar a mesma “ratio
decidendi” utilizada pela Corte Superior Trabalhista, ao remodelar o
citado verbete sumular nº 191. Afinal, antes da Lei da Reforma, as horas
“in itinere” tinham natureza salarial, fazendo inclusive parte da
remuneração do trabalhador, e agora, após nova Lei nº 13.467/2017, elas
simplesmente deixaram de existir.

Note-se, em
síntese, que não há nenhuma diferença entre os casos acima comparados.
Ao revés, no ano de 2012, o legislador infraconstitucional reduziu
direito trabalhista ao alterar a base de cálculo do adicional de
periculosidade, tendo o C. TST restringido dita mudança prejudicial
apenas àqueles trabalhadores que não tiveram o direito à condição mais
beneficia já incorporada ao contrato de trabalho. Em 2020, se, como
restou provado no caso julgado pelo TST, o reclamante sempre teve
direito às horas “in itinere”, o que, inclusive, sempre justificou o
pagamento das horas extras antes da Lei nº 13.467/2017, a perpetuação de
dita condição violadora ao direito às horas suplementares, incorporada
que foi ao seu patrimônio jurídico, não pode, a partir do dia
11.11.2017, simplesmente deixar de existir.

Entendimento em sentido contrário, a nosso ver, atentaria contra a própria lógica do entendimento firmado pelo TST no ano de 2012, e que, frise-se, deve ser aplicada agora para os novos dispositivos da CLT que, por força da Lei nº 13.467/2017, tiveram seu alcance limitado e/ou suprimido pelo legislador reformista.

Sétimo, até que haja um posicionamento em definitivo do Tribunal Pleno e/ou da SBDI-1 do TST acerca da Lei a Reforma ressaltando-se que aqui está em debate o direito material, cuja aplicabilidade do direito intertemporal não fora enfrentada pela Instrução Normativa nº 41/2018 do TST, deve se conferir idêntica interpretação em consonância ao entendimento já consolidado na Súmula nº 191 do C. TST.

Nesse prumo, peço vênia para reproduzir nossas palavras que, à época, em artigo escrito sobre o tema, com o título TST altera base de cálculo do adicional de periculosidade, já apontava os argumentos jurídicos segundo os quais as alterações prejudiciais trazidas pela legislação superveniente não podem afetar os contratos dos trabalhadores que efetivamente já tenham incorporado aludidas condições mais benéficas em seu patrimônio jurídico:

Oitavo, porque o entendimento acima exposto encontra
substrato na doutrina clássica dos professores Ingo Wolfgang Sarlet,
Flávia Piovesan, Luís Roberto Barroso e José Joaquim Gomes Canotilho,
para os quais o efeito “cliquet”, mais conhecido como princípio da proibição de retrocesso, significa
dizer que é inconstitucional qualquer medida tendente a revogar os
direitos sociais já regulamentados, sem a criação de outros meios
alternativos capazes de compensar a anulação desses benefícios
. Ou
seja, o nível de proteção de um direito fundamental não pode retroagir
para menos. O direito pode ser até modificado, mas nunca ter sua
proteção diminuída.

Nesse sentido, o princípio do não-retrocesso social (CF, art. 7º, “caput”), também chamado de aplicação progressiva dos direitos sociais, consiste na impossibilidade de redução dos direitos sociais, garantindo ao indivíduo o acúmulo de patrimônio jurídico.
Tem por objetivo precípuo impor limites constitucionais à atuação do
legislador ordinário no que concerne à restrição e/ou supressão dos
direitos fundamentais sociais.

De resto,
importante frisar que não se está afirmar aqui que toda a reforma
trabalhista não seja aplicada em sua integralidade aos contratos de
trabalho que estavam em curso à época da produção de seus efeitos. O
principal aspecto a ser analisado é saber se, no caso concreto, aquele
direito que fora suprimido e/ou reduzido pelo legislador reformista já
estava incorporado ou não ao patrimônio jurídico do trabalhador.

Portanto, se, na hipótese, tal como decidiu o C. TST, o reclamante sempre teve direito às horas extras decorrentes das horas “in itinere”, cuja violação à jornada de percurso se perpetuou ao longo do tempo mesmo após a Lei nº 13.467/2017, o ato jurídico perfeito da condição violadora ao direito não pode ser afetado pela nova disposição legal “in pejus”.

Conclusão distinta, em arremate, ocorreria se, na particularidade do caso, a violação do direito das horas de trajeto somente tivesse ocorrido após a vigência da Lei nº 13.467/2017, ainda que o contrato de trabalho fosse firmado anteriormente. Nesse cenário, o empregado não teria incorporada nenhuma condição mais benéfica, pois nunca teria direito ao recebimento de horas extras. Há que se distinguir a mera “expectativa de direito” em confronto com o efetivo e incorporado “direito adquirido”.

Ricardo Calcini é mestre em Direito pela PUC-SP; professor de Direito do Trabalho da FMU; especialista nas Relações Trabalhistas e Sindicais; organizador do e-book digital "Coronavírus e os Impactos Trabalhista" (Editora JH Mizuno); coordenador do e-book "Nova Reforma Trabalhista" (Editora ESA OAB/SP, 2020); organizador das obras coletivas "Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista" (Editora LTr, 2019) e "Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada" (Editora JH Mizuno, 2019); coordenador do livro digital "Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões" (Editora Eduepb, 2018); palestrante e instrutor de eventos corporativos "in company” pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe.

Fonte: ConJur

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