União vai ao STF para não pagar indenização a perseguido pela ditadura
O pagamento de indenizações a anistiados políticos, perseguidos e torturados durante a ditadura militar no Brasil depende de uma decisão do Supremo Tribunal Federal.

O Ministério Público Federal já se manifestou no processo a favor dos pagamentos, com o fundamento de que crimes envolvendo a violação dos direitos humanos fundamentais durante o regime militar não prescrevem.
"A União agora está levando o assunto para o STF. O parecer do MPF teria sido no sentido de manter o entendimento do STJ. É importantíssimo que a Suprema Corte confirme a tese pacificada no STJ. E, nesse sentido, o posicionamento da PGR tem grande relevância", explica o procurador regional da República no Ministério Público Federal em São Paulo Marlon Weichert.
Para que o tema seja julgado, o relator do RE, ministro Nunes Marques, deve liberar o processo para julgamento, e a presidente do Tribunal deve agendar. Não está descartada a hipótese de uma decisão monocrática, mas é mais provável, segundo especialistas, que ela seja julgada no Plenário Virtual do Supremo.
Procrastinação
Segundo especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, a intenção da União ao levar o tema para a Corte Suprema é apenas protelar a condenação, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que as indenizações não prescrevem.
A advogada Irene Gomes, do Distrito Federal, representante de várias vítimas da ditadura, afirma que "o recurso extraordinário tem caráter meramente procrastinatório. Visa, tão somente, a atrasar o andamento processual para ganhar tempo para a União. A parte interessada pode, inclusive, a depender dos demais conteúdos processuais, questionar a má-fé da União".
Argumento similar é utilizado pelo advogado Wilson Quinteiro, do Paraná, autor de tese sobre a inexistência de prescrição dos crimes contra perseguidos e ex-presos políticos brasileiros. "Acredito que eventuais disputas judiciais sobre o tema, embora possam continuar ocorrendo, são certamente tentativas de mera argumentação diante do já positivado pelo Judiciário."
O STJ já havia admitido a imprescritibilidade das ações indenizatórias que envolvem a violação de direitos fundamentais durante a ditadura militar, ao formular a Súmula 647, no ano passado, "garantindo, inclusive, às famílias daqueles que tiveram seus direitos fundamentais violados o direito de alcançar a reparação tanto material quanto moral", explica Quinteiro.
De acordo com a Súmula 647, "são imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar".
União X MPF
O recurso extraordinário foi ajuizado pela União contra decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que condenou o Estado a pagar R$ 90 mil a um anistiado por danos morais sofridos em decorrência da prisão, perseguição política e tortura durante o período de repressão.
A União alegou que a decisão do TRF-5, ao reconhecer a obrigação do Estado de indenizar o anistiado político por danos morais, contrariou o artigo 37, parágrafo 6°, da Constituição Federal, que diz que "as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".
O Executivo sustenta que o direito prescreveu, uma vez que a ação judicial foi interposta mais de 40 anos depois do fato. Argumentou, ainda, que a Lei 10.559/2002 já garantiu a reparação econômica para os anistiados políticos, tendo vetado no artigo 16º o pagamento cumulativo de benefícios ou indenizações com o mesmo fundamento. Por fim, considerou excessiva a quantia estipulada pelo Tribunal e pediu a redução do valor.
Segundo o MPF, representado pela subprocuradora-geral da República Cláudia Sampaio Marques, o recurso da União não deve ser provido, já que os crimes de violação aos direitos fundamentais cometidos durante a ditadura militar são imprescritíveis e não se aplica o prazo de cinco anos previsto no Decreto 20.910/1932.
No despacho, Sampaio cita trecho da decisão do STJ no REsp 1.989.264, que decidiu que "é possível cumular a indenização do dano moral com a reparação econômica da Lei 10.559/2002", ao contrário do que alega a União.
Para Cláudia Marques, não houve violação do art. 37, § 6°, da Lei Maior, pois estão configurados os requisitos da responsabilidade objetiva do Estado.
Já em relação à queixa sobre o alto valor da indenização, ela afirma que rever a quantia exigiria reexame de fatos e provas. A representante do MPF aponta que o procedimento é proibido em recurso extraordinário, conforme estabelece a Súmula 279 do STF.
"Isso significa que o STF deve acatar a manifestação do Ministério Público Federal no sentido de que os temas questionados têm caráter infraconstitucional somente. Não dizem respeito, direto, à ofensa de preceito constitucional. Ficam à borda, têm caráter apenas reflexos da Constituição Federal", explica a advogada Irene Gomes.
Jurisprudência consolidada

O STJ já tem jurisprudência clara sobre o tema. Além do precedente citado pelo MPF, há ainda o Agravo Interno no REsp 1.710.240/RS, em que a 2ª Turma do STJ reafirmou o entendimento de que a prescrição quinquenal, disposta no art. 1º do Decreto 20.910/1932, não se aplica aos crimes da ditadura.
Esse mesmo entendimento foi suscitado pela ministra Regina Helena Costa no REsp 2.006.473, em setembro deste ano.
"No caso dos anistiados, ex-presos e perseguidos políticos, o direito a indenização, seja na esfera material ou moral é cediço, tanto em julgamentos, como pela doutrina", diz Wilson Quinteiro. "Ao ter sido formulada a Lei nº 10.559/2002, o Estado brasileiro reconheceu sua obrigação de indenizar, tanto na esfera material por meio da Comissão de Anistia, mas não exclusivamente por ela como na esfera moral por meio das ações judiciais, apenas e o STJ já entendeu como cumuláveis tais indenizações, por meio da súmula 624."
De acordo com a Súmula 624, "é possível cumular a indenização do dano moral com a reparação econômica da Lei n. 10.559/2002", a Lei da Anistia Política.
Responsabilidade solidária
Além disso, não apenas o governo federal, mas também todos os estados podem ser responsabilizados pela sua conduta durante o regime militar, já que possuem responsabilidade solidária na infração aos direitos fundamentais.
Embora as diretrizes da perseguição fossem originadas do governo federal, eram, muitas vezes, exercidas por entes dos estados-membros, como, por exemplo, as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e os Departamentos de Ordem Política e Social (Dops), órgãos estaduais de repressão.
Os próprios estados, ao editar leis que fixam a indenização, passaram a assumir a sua parcela de responsabilidade nas perseguições, torturas e prisões cometidas à época. Quinteiro destaca ainda que a própria União, ao efetuar o pagamento administrativo de indenização, reconheceu a veracidade dos fatos, bem como sua responsabilidade pelos danos causados.
Por exemplo, o estado de Santa Catarina responde solidariamente com a União a ação envolvendo repressão da força de repressão exercida pelo poder estadual. Os agentes do Executivo catarinense tinham conhecimento da atuação da brigada militar, a polícia militar desse estado, na repressão política durante a ditadura. Esse entendimento foi firmado pela 4ª Turma do TRF-4, no AG 5007502- 86.2019.4.04.0000.
"Havia policiais catarinenses atuando na cidade de Itapiranga e as autoridades em Florianópolis foram alertadas sobre prisões irregulares que estavam ocorrendo. Houve evidente falta do serviço, a resultar na responsabilidade do estado pela reparação dos danos suportados pelas vítimas", demonstra o advogado paranaense.
"Dessa forma, acredito que, as questões referentes à imprescritibilidade já estão há muito tempo superadas pelo Judiciário, não havendo muito que se debater. A única hipótese de argumentação do Estado reside na comprovação da perseguição, que deve ser analisada caso a caso", avalia Quinteiro.
Fonte: ConJur